Adentro o quarto do avô, que agora é o quarto da avó.
Antes, cheiro de fumo de corda e Phebo; agora, cheiro de Leite de Rosas com almíscar.

Na cama, uma colcha florida; antes, uma manta marrom escuro.
Hoje, uma cachorrinha corre pra lá e pra cá; outrora, a viola repousava solenemente em cima do travesseiro. A estante ainda é marrom, madeira maciça, não acaba nunca.

Vovô Tito era cantor, tocador e contador. Um homem simples, com bigodes grandes e dentes separados. Trabalhou durante toda a sua vida no mesmo posto de gasolina. Tinha esse orgulho de funcionário fiel estampado no peito. Uma vez, perderam lá no posto uma carteira cheia dinheiro, mas era muito dinheiro mesmo. E o que dava para fazer com toda aquela grana? Uma varanda? Uma bicicleta nova? Uma poupança? Um plano de saúde? Móveis novos? Uma viagem para Aparecida do Norte? Além de funcionário fiel, carregava o valor de ser um homem honesto. Devolveu cada centavo… O felizardo, dono da carteira, não lhe pagou nem um café. Mas deu ao velho uma história pra contar aos filhos, aos netos e a quem encontrasse no caminho. Sr. Tito adorava contar histórias e viveu boas delas com seu neto e meu irmão: Luiz.

Essa é uma das minhas favoritas! Vamos ao cenário: uma criança alta, de bochechas redondas. Luiz era um menino gordo de 4 anos que aparentava 8. Entediados dentro de casa, queriam sair para passear. A casa ficava longe do centro. Começaram a levantar hipóteses: Luizinho não aguentaria ir a pé todo o caminho, Tito não conseguiria carregar Luiz no colo, o menino era muito novo pra assumir a responsabilidade de segurar firme na garupa da bicicleta e muito grande pra caber na cadeirinha. Táxi não era uma opção. Eis que vovô Tito tem uma ideia genial: corre para o quartinho de ferramentas, corre no quarto da avó, rouba um travesseiro e uma manta, e aparece com a maior engenhoca de todos os tempos: um carrinho de mão versão Comfort Plus — um travesseiro embaixo, uma manta florida em cima, uma mamadeira gigante ao lado. Tudo pronto? Assim embarcaram os dois na maior aventura. Entre pães com sardinha e caldos de mocotó, eles desbravaram a cidade, mandaram o tédio embora e o carrinho de mão fez o maior sucesso, bom muitos pararam riram e até se indignaram com a tal engenhoca, mas os aparecidos receberam como elogio, não existia motivo para se envergonhar.

Entre uma aventura e outra, sempre tinha algo tocando, no rádio ou na viola. Vovô tinha um vibrato invejável, quando eu ouço cartola com os olhos bem fechados consigo sentir sua voz- um tom verde agudo.

Todo mês ele nos comprava uma caixa de bombom e quando o 13° saia ele comprava duas, uma pra cada um, da Garoto que ainda é a minha favorita.  Aprendi muitas coisas com meu avô, dentre elas que não precisa ser estudado pra ser inteligente, que não precisa falar certo pra passar a visão e que a nossa voz é um serviço ao outro. Nas tardes de domingo nós visitavamos a casa de repouso, ele cantava e tocava e eu falava poesias.

Aprendi com ele a cantar pegadas na areia, ele recitava com uma verdade tão bonita que me fazia ter certeza da minha fé. Vovô não era o pai biológico da minha mãe e isso nunca importou para ele, de um jeito próprio e decolonial ele amou a todos nós. De um jeito simples, nos mostrou que ser bicho do mato é coisa de gente bem resolvida.

Texto usado na construção da camiseta: Bicho do Mato da marca, Jabú.